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DA RELIGIÃO À LOUCURA



Margarida Azevedo
Sintra/Portugal

Nos bancos da catequese aprendia-se que a religião não se discute. Este princípio cohabitava com outro igualmente estranho, a saber, a nossa religião é a única verdadeira.

Em termos práticos, isto significava: Deus não se põe em causa; o binómio fé e não fé eram impensáveis; dúvida e descrença eram sinónimas; proibição da leitura da Bíblia por ser miisteriosa e os seus textos não estarem ao alcance de todos; os ateus são gente do diabo; a Ciência era vista com desconfiança, donde aderir às suas inovações era tido como prática desviante da fé. Tudo era pesado numa balança tendenciosa de moral versus imoral, de tal forma que a religião pensava pelos fiéis, criava normas comportamentais verdadeiramente impraticáveis, excluindo os seus interessses pessoais. O bom crente era aquele que abdicava de si, que pensava exclusivamente no outro, ou quase, sem objectivos particulares.

Longe da felicidade, a religião era o inferno deste mundo, o pecado que mortificava o desejo de progresso, de prazer, de liberdade, que rebaixava a vida enquanto valor supremo, sacrificando-a em nome de uma panóplia de príncipios criadores de tipos psicóticos perigosos, neuroses que se sedimentaram progressivamente no inconsciente colectivo, facto que, mediante os últimos acontecimentos, prolongou-se até aos nossos dias.

Assim, verificamos, sem a necessidade de grandes reflexões, que religião e loucura têm sido sinónimas, para os racionalistas, santidade para os seus mais altos dignatários. Iludindo os povos de que em nome de Deus tudo é permitido, na defesa ideológica do grupo religioso, porque transmissor de toda a verdade, inventaram a impunidade num mundo qualquer a que cinicamente chamam reino de deus , onde crêem que vão receber a gratificação pelos seus bons serviços: a desvaloração da vida humana.

Contra a alucinação (falar em nome de outro, de um grupo, de Deus, imposição das suas próprias convicções e princípios particulares como máximas universais, em casos mais graves, cósmicas), a Razão impõe-se denunciando a estupidificação das mentes; a Tecnologia o conforto, facilitando tarefas. Os povos, inevitavelmente, foram aderindo, rendendo-se às facilidades, ao alívio da força muscular; a Medicina evoluíu, as condições de sobrevivência melhoraram com as vacinas, os antibióticos, a melhoria das condições de higiene impõs-se, veemente. Por outras palavras, o Bem cresceu pela mão da Razão, pelo livre pensamento, coisa que a Religião nunca soube fazer. A Educação, ao alcance de todos, tornou-se objecto de consumo como outra coisa qualquer.

Hoje, caminha-se para uma autonomia do Estado, face ao religioso, porque a História também amadurece, os cidadãos politizam-se, a laicização torna-se, consequentemmente, uma necesssidade imperiosa, democratizadora do religioso. A Moral, lentamente, regressou às suas origens. É anterior à Religião.

Contudo, se a Religião teimar em permanecer na intolerância, se continuar a confundir-se com a Fé, prevalecerá não como caminho para Deus, mas uma grotesca, disforme e instável presença no mundo, isto é, está a mais. Infantilizando a fé e remetendo-a para segundo plano, a Religião tem abafado a individualidade do crente na infamante tentativa de o moldar a uma autoridade fictícia, criadora de teologias da dominação, raíz de sofrimentos, de discriminação de toda a ordem, criadora de morais desfasadas, descontextualizadas, imprudentes e mesquinhas. Ou muda e adapta-se às novas vivências, ao emergente progresso do Espírito, grito incessante da procura da Luz, abandonando a omnipotência de um saber que não possui, ou tornar-se-à estéril, pueril, desnecessária porque contrária ao grande objectivo dos homens e das mulheres, a Felicidade, bem como no encontro de ambos rumo a vivências maiores. O mundo é masculino e feminino que, pela sabedoria de um Criador supremo, se atraiem mutuamente.

A Fé tem poderes e forças que a Religião jamais terá; a Fé transporta montanhas, perdoa, é inerente a todo o ser humano; a Religião é para alguns, aqueles que se lhe subjugam, fracos, acríticos; a Fé é libertadora, remete para a Divindade, a Religião desconhece os caminhos da individualidade.

Os povos crescem em valores, enfatizam-nos na complexidade histórica das épocas charneira para as suas mudanças; com tudo o que os caracteriza, fez deles lições. Por todo o lado, impõem-se os símbolos, as lutas que os envolveram. Podemos dizer que o mundo é mesmo assim? O tic-tac do relógio existêncial, que nos faz lembrar que o passado vai-se enterrando, dá novos tempos ao tempo. A Religião tem que enterrar as velharias. Já não há herdeiros e tradições porque a Democracia impõe-se como modernidade na partilha de valores em que a cidadania é o mais importante. Religião nâo pode significar colisão.

A Religião discute-se, quando desvalora a Vida, quando pretende sobrepor-se aos Direitos Humanos, desvalorando-os; quando combate a Liberdade em todos os seus aspectos; quando prega o impraticável; quando os seus representantes não dão exemplo aos fiéis. A Fé é uma graça suprema, é uma força que emana da alma e faz ter coragem para enfrentar o dia que nasce, mas ela é, principal e inevitavelmente, um sopro de Amor para com todo o ser-vivo.

Um valor supremo, porém, nos era transmitido na catequese: se Deus nos deu a vida, só Ele no-la pode tirar, porque a Vida é o Divino dentro de nós. As religiões não podem manipular a fé, rumando contra a vida. Somos todos irmãos e é como irmãos que temos que aprender a viver, num mundo que chega e sobra para todos. Quando a Religião perceber isto, confundir-se-à com a Fé, e nessa altura será outra coisa, não importa o quê porque será, com toda certeza, uma coisa muito boa.

A grande questão, a saber, o que é a salvação, vamos salvar-nos do quê, de que devemos fugir para entrar no Reino de Deus, o que é assim tão temeroso e forte que nos pode barrar a sua entrada, não é aflorado.

Todas são correntes pedagógicas, o que é de revelar, mas ensinaram mediante uma adesão cega aos seus princípios subjugadores. É louvável ensinar a ler e a escrever, se com isso se ensinar a pensar; ensinar Ciências Naturais é extraordinário, desde que seja feita a destrinça entre a Criação segundo o Génesis e a Criação segundo a Ciência; a Arca de Noé e a Evolução das Espécies; a natural extinção de espécies e o surgimento de outras; o tempo de existência da Terra, etc.; ensinar a diferença entre a explicação científica e a proclamação bíblica.

O sabe tudo religioso não pode ser um substituto do pouco saber da Ciência, que rejeita o não provado, nem o colocar de alguma questão fora do ram-ram estupificador dos bonzinhos, dos pobrezinhos e dos aleijadinhos ser uma tentação do demónio, o a riqueza fonte de vícios, o conforto luxo pecador.

Tudo isto perdurou, numa sociedade que cresce tecnologicamente a um ritmo avassalador, com a Ciência a impor a força da Razão, num ambiente de liberdade sexual, onde o prazer é partilhado e não mais a subjugação de um sexo perante o outro, numa luta sem tréguas, ainda, pela laicização do Estado, o grande cavalo de batalha das democracias ocidentais.

Se o religioso não arrepiar caminho, não abandonar a arrogância, não se empenhar na modernidade, se rejeitar que vivemos num mundo de diferentes, pluralista, multicor, iremos todos desaparecer absorvidos pela opressão, pelo terror e pelo impulso dos instintos; mas antes, porém, seremos levados, inevitavelmente, à loucura, na luta instintiva pela sobrevivência em vez de na procura da santidade na prática virtuosa do Bem. Somos todos hindus, muçulmanos, judeus e cristãos. Ora nascemos num lado, ora no outro do planeta, porque a Fé é transversal a todos. Se a Religião não começar a ensinar a amar, e rapidamente, estaremos perdidos. Que Deus tenha piedade de nós. 

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