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O FIM DO NATAL NOS CONTENTORES


Margarida Azevedo
Frequentou Universidade Nova de Lisboa
Mora em Sintra


Jamais alguém, no seu perfeito juízo, terá pensado que os contentores do lixo pudessem tornar-se em locais de romaria. Mas a vida dá tantas voltas! Ir ao contentor é o ritual anual do Natal. Depositar embalagens nesses recipientes fedorentos é uma alegria, uma felicidade. E que felicidade! Eles transbordam com tantas embalagens de cartão, toneladas de papel couché colorido, laços e fitas reluzentes, envólucros de todos os tamanhos, garrafas … Ao lado destes, em regime de boa vizinhança, jazem os dos ossos, espinhas e cascas de tudo o que é descascável. Em suma, ir ao contentor é chique porque mostra riqueza natalícia.

Há que perceber que o Natal é a festa do Pai Natal, aquele homem muito feliz e gordo, que vem sabe-se lá de onde, carregado de prendas num trenó puxado por renas que tanto andam no ar como em terra.

Entre as prendas vêm brinquedos pedagógicos por engano, perdidos entre os outros, a maioria, sem utilidade, como os de som estridente e irritante, que põem a cabeça em alvoroço e que, se não levarem uma marretada a tempo e horas, conduzem uma família inteira ao psiquiatra, com sintomas de quem levou choques eléctricos.

Em casa, o cenário é frenético; todos tropeçam nas geringonças que para nada servem, sujeitos a partirem uma perna, ou a escorregarem no chão que as crianças irrequietas e os adultos descuidados sujaram, tornando-os alvos fáceis da parede mais próxima onde o mais provável é esmurrarem-se.

Depois, muito para lá da meia-noite ou uma e tal da madugada, naturalmente, a barriga dá de si. Convém ter sais de fruto ou Água das Pedras, não vá o diabo tecê-las. A euforia das prendas, a refeição abastada, as misturas incompatíveis, os excessos misturados com os perfumes embriagantes ofertados por alguém e que todos queriam cheirar, provocou uma overdose colectiva do tipo drogas duras ou, na melhor das hipóteses, cogumelos venenosos.

As luzes intermitentes da gambiarra da árvore de natal, os castiçais de velas meio-derretidas, os pais-natal espalhados pela casa, os pinheiros das paredes, os arbustos artificiais nas ombreiras das portas, os risos largos e vagos, as conversas de nada, enfim, são depressivos para os que não puderam ter um Natal semelhante, e julgam que tudo isto é felicidade, hilariantes para os que dele fizeram parte e se julgam privilegiados. 

Entretanto, se à pergunta despropositada e descontextualizada de quem era Jesus a criança não responder que era um treinador de futebol ou um surfista, ou até um cantor de rap, já é ter muita sorte; se responder “ não sei” é muito bom, antes isso!

Porque não depositável nos contentores, Jesus é o grande esquecido no Natal. Jesus não deixa restos, não vem da Lapónia nem distingue ricos e pobres. Ele apenas nasceu, filho de uma mulher, debaixo da Lei ( Gl 4:4), como nós. Alguns ainda celebram o seu nascimento, em festa; alguns ainda se lembrarm da alegria da Revelação.

Este momento de caducidade humana, de nihilismo, tem transformado o Natal num absurdo. É o natal dos ímpios ou da impiedade. Mas ele interpela-nos, leva-nos irremediavelmente à reflexão sobre como retirar a máscara que nos envolve, a qual não permite que sejamos autênticos. O Natal não é um episódio do passado e que se comemora anualmente. O Natal é um eterno presente, uma festa de renovação na qual o humano é capaz de atingir Deus se, para tanto, for um/uma bom/boa homem/mulher em sociedade.

O Natal não é um acontecimento religioso, mas histórico e sociológico. Antes e depois de Jesus a sociedade teve, forçosamente, que alterar-se; os movimentos religiosos continuaram os mesmos, os primeiros cristãos surgiram desses grupos.

É impossível pensar o Cristianismo sem uma doutrina social; ele espraia-se nas cidades, aldeias, vilas, campos, lugarejos. É no concreto com o outro que ele tem sentido. Precisamos de tocar na terra para percebermos a vinda de Jesus; uma manjedoura não é um palácio, os arredores não são a Baixa, o campo não é a cidade, os pastores não são os sacerdotes.

Vamos festejar o Natal de Jesus. Uma refeição melhor, sim; um ambiente festivo, concerteza; troca de prendas, porque não? Porém, uma festa des-mascarada, celebrante da alegria da vida, do renascimento de um universo de esperança, de um fim e de um princípio.

O Natal é a festa da eternidade num tempo fugaz, que é sempre o nosso; uma imagem, sempre a nossa; um espaço, o lugar em que habitamos.

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